A arte da performance e a simbologia humana
recuperando o poder roubado das nossas máscaras
O Humano Metamorfo
Thomas Blackshear, Intimacy (2015).
Uma das minhas pinturas favoritas da arte contemporânea é essa acima, do pintor americano Thomas Blackshear. Nela, uma mulher afro-americana segura uma máscara cobrindo parcialmente seu rosto, com várias outras ao fundo, simbolizando as várias máscaras que as pessoas vestem para socializar e fazer negócios.
Do outro lado, ela revela um olhar quase hipnótico, um raio luminoso saindo de seu corpo e um jardim de flores simbolizando seu eu real de acordo com o pintor. Ela retrata a revelação do eu interior para os outros. Na minha visão, ela causa fascínio pela capacidade de performar e de se despir da própria performance. Ela domina essa arte, mostrando somente aquilo que deseja mostrar.
A verdade é que todos nós performamos, em um momento ou em outro, atores na peça da nossa própria vida. Existem vários tipos de performance. O maior exemplo da nossa era é, sem dúvidas, o fenômeno das redes sociais, mas se engana quem acha que isso começou aqui.
Desde os primórdios da raça humana, seja no animismo xamânico ou nos teatros da Grécia Antiga, sempre utilizamos de símbolos e máscaras para assumir novas formas. A diferença é que nossos antepassados dominavam a arte de se transmutar, não eram dominados por ela.
Máscaras animistas dos Himalaias, anteriores ao Budismo e Hinduísmo - Cavin-Morris Gallery, exposição Faceshifting, Nova York.
Pode até parecer estranho pensar no passado como mais evoluído do que o presente em alguns aspectos, algo que vai contra nosso pensamento moderno geral que enxerga tradição como crendice popular de povos menos evoluídos - uma ótica bem colonial.
Fato é que somos uma continuação deles e certas tradições cumpriam papel fundamental na nossa sociedade e na nossa psique como indivíduo, se é que assim podemos chamar uma vez que as sociedade antigas eram mais baseadas em comunidade do que no nosso individualismo atual.
Podemos até argumentar que tais símbolos e capacidade humana de utilizar da simbologia foi um fator essencial para nossa evolução através dos séculos. Portanto a falta de tais fatores, ou o uso equivocado maléfico, no afeta intensamente hoje.
Perdemos algo essencial. Trocamos poder real, usado como ferramenta para caminhar entre mundos e nos conectar socialmente, por uma falsa sensação de controle. Aparência sem poder real. Imagens vazias. Somos escravos das nossas máscaras.
Mosaico romano do século II a.C., Museu Capitolino, Roma, Itália.
As Máscaras Vazias
A primeira performance que tomei parte foi aquela do destaque escolar. Era muito boa a sensação de ser recompensada por aquilo, mas acima de tudo era um instrumento que cairia em desuso eventualmente. A sensação de alívio ao não precisar mais performar foi maior do que qualquer tipo de recompensa. Isso me encaminhou para a recusa de usar uma máscara de novo.
Performar é um dos pilares da minha geração. Não é só uma questão de FOMO, o famoso Fear of Missing Out - o medo de ficar de fora de algo. Mais fundo que isso, se recusar a participar da performance é ser relegado à inexistência.
Se você não vai àquela festa, se não tem uma lista de pessoas como itens de supermercado em algum aplicativo de relacionamento e, principalmente, se você não posta sobre isso - você não existe. É como um ser extraterrestre.
O objetivo não é viver em si, mas mostrar a vida sob um determinado ângulo, que muitas vezes não bate com a realidade. Prova disso é a insegurança dessas pessoas refletida no incômodo que sentem ao se deparar com alguém fora desse ciclo. Como assim você não vai a nenhuma festa? Como assim não está saindo com ninguém? Você não tem, tipo assim, uma vida?
Tenho, a minha vida. Com panquecas com canela e mel, amigos contados nos dedos de uma mão, dias calmos e coisas que eu gosto. Coisas que não preciso provar para ninguém porque estou ocupada vivendo. Uma vida que não corresponde às expectativas gerais de uma vida pública, porque eu não sou uma figura pública.
A vida pública exige acontecimentos novos com determinada frequência, uma estética específica e muito trabalho. Tudo isso pra quê e, principalmente, pra quem? Mais cansativo do que a exigência da performance é lidar com a insegurança projetada dos outros.
Há dois caminhos para prosseguir a partir daí: 1. Simplesmente não interagir com esse tipo de pessoa e não perder energia com isso, ou 2. Agir com graça e gentileza para com aquele que ainda está preso nessas exigências limitantes.
Era assim que eu pensava, até perceber não podemos viver sem máscaras. Elas são e sempre foram historicamente parte do tecido social humano. A minha aversão advinha principalmente das máscaras vazias que usamos hoje: máscaras que tiram poder em troca de uma falsa ilusão de controle, poder que se acumula ainda em símbolos só que na mão de terceiros, pelos mesmos motivos de sempre - dinheiro, influência, etc.
O que precisamos é saber tomar nosso poder de volta.
O Nascimento do Caos
É entendendo as origens dessa simbologia que conseguimos retomar o que é nosso.
Um grande símbolo disso foi Cleópatra, especialmente em sua chegada em Roma, quando usou da sua beleza e apresentação para enfeitiçar todos com sua presença e assim tentar garantir seu lugar como governante do Egito. Seja nessa história ou na da deusa babilônica Ishtar que vencia batalhas antes mesmo de começarem usando estratégia similar, ou na de Oxum - as máscaras em questão eram instrumentos de poder.
Esse tipo de poder é disruptivo, usando do caos para alcançar seus objetivos, quebrar as estruturas já existentes e criar novas. Nós temos acesso a isso, se ousarmos deixar de sermos usados para usar. Ao colocar nossa máscara, podemos ser quem quisermos, viver na prática a vida que queremos. Não é um fake it until you make it, mas um aja como a pessoa que você quer ser.
Os cenários são muitos. Às vezes o que nos falta é só coragem. Para enviar para aquela sonhada vaga de emprego, o mestrado no exterior que você vêm adiando há anos, aquela pessoa que você admira num sentido romântico ou não, a capacidade de dizer não se você está acostumado a ser uma pessoa de “sims”. Nossas máscaras nos ajudam a nos metamorfosear e conquistar mais do que um dia poderíamos imaginar, quebrando padrões antigos.
Citei exemplos femininos e poderia citar mais. Esse conhecimento não é segredo se você é uma mulher, ainda mais uma minimamente ambiciosa. Nada nunca nos é dado. Se quisermos posições de liderança, temos que ser capazes que quebrar a simbologia delimitada à nós e impor respeito.
Podemos usar da simbologia pra nos tornarmos nossa própria musa, assim como Anaïs Nin, fugindo da validação ilusória de uma sociedade que nos prefere distraídas e criando nosso próprio centro de gravidade. Nos inspirando em outras mulheres ao nosso redor.
Portanto, usar uma máscara nem sempre é no sentido de enganar alguém, até porque no final da história estamos apenas nos enganando, mas usar das nossas ferramentas, retomar o poder sobre a nossa vida e o que podemos oferecer de volta às pessoas ao nosso redor. É revelar versões de nós mesmos que nem sabíamos que existiam.
Dar significado a existência que nos cerca, religiosamente ou não, e assumir nossos símbolos é parte da experiência humana. Não seja escravo da sua máscara. Use-a com sabedoria. Mostre aquilo que quer mostrar pois a performance é uma das mais antigas artes humanas.
Conclusão
Existe muito poder e simbologia que podemos usar para nos conectar com os outros e com a vida que queremos ter, mas eu diria que o momento mais poderoso de todos é quando as deixamos cair. Aquele momento em que máscara nenhuma é necessária, é estar confortável na vulnerabilidade.
Quando nos abrimos para as possibilidades de todas as coisas incertas que podem acontecer, sem ansiedade, revelando nosso lado mais íntimo por escolha própria, assim como a mulher de Intimacy de Blackshear. Ainda hoje é uma das coisas mais bonitas que pode acontecer a alguém.
O amor arranca as máscaras sem as quais temíamos não poder viver
e atrás das quais somos incapazes de o fazer.
- James Baldwin
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