Já se sentiu mal sem saber o motivo? Uma espécie de cansaço que te impede de estar presente. Ainda assim, você não podia se dar à esse luxo agora. Você deveria estar fazendo mais, você já deveria ter chegado lá.
Recentemente, não vinha me sentindo eu mesma, mas era difícil identificar o por quê. Demorei a perceber a armadilha.
A Tríade do Esvaziamento: autoaperfeiçoamento, individualismo e narcisismo
Existe uma pressão que nos cerca, nos fazendo ceder de pouco em pouco, nos moldando em algo que nem queremos ser. Até começarmos a pensar que foi ideia nossa.
Nossa vida é uma lista infinita de coisas a serem feitas, requisitos a serem cumpridos - a rotina perfeita, o emprego dos sonhos, o próximo certificado, os hobbies da vez, falar 5 línguas e assim em diante. Nem as amizades escapam desse esquema calculado.
A lista não é só um papel, é uma deidade onisciente e toda poderosa. Ela vê os cursos que você comprou e não fez, todos os livros que ainda não leu, os projetos no fundo da gaveta, todas as formas que você poderia ser melhor do que é agora.
Você não tem permissão só de existir. Para que ser você, se você pode ser melhor? Sua vida só tem sentindo enquanto está correndo para completar a próxima tarefa e quando conquista algo, não consegue comemorar. É um alívio momentâneo. Então o ciclo recomeça.
O tão adorado do autoaperfeiçoamento contínuo de nossa vida moderna revela sua verdadeira face - a autoexploração definida por Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço. Não precisamos mais de um chefe para nos punir, viramos nossos próprios carrascos.
E muitas vezes nem temos direito ao alívio. Quantas pessoas não fazem de tudo para estar em um relacionamento, seja para provar que podem ser amadas ou por medo de ficarem sozinhas, e acabam dobrando o tamanho do problema. Sustentar o seu vazio é dureza, sustentar o seu e o do outro pode ser esmagador.
Isso tudo é multiplicado pelo esvaziamento da personalidade e vontades próprias e, mais preocupante, o narcisismo extremo que desenvolvemos nas nossas relações online, nos isolando. Queremos cada vez mais, se expor nas redes é essencial ao ponto de causar estranhamento quando você não o faz, ao mesmo tempo (achamos que) não precisamos de ninguém e, ao menor desacordo, as pessoas viram coisas a serem evitadas e cortadas com razão (já que somos dono dela) das nossas vidas. Puro suco do individualismo. Uma mistura bem perigosa.
A filósofa Marilena Chauí em sua entrevista para a TV Brasil traz uma reflexão valiosíssima nesse assunto: Existir é ser visto. Se você não é visto, você não existe. Essa é a primeira marca do narcisismo. Isso nos faz questionar até onde estamos vivemos de acordo com nossos próprios valores e não aqueles impostos na busca de aprovação. É inegável a influência das redes sociais que nos dão a doce ilusão de autonomia e liberdade em troca da nossa servidão como mero usuário, um número não humano, para as Big Techs. Porém, como a filósofa cita na entrevista, o narcisismo é inseparável da depressão e a ilusão nos traí por mais doce que seja.
Por mais que a princípio possa não parecer a princípio, esses problemas estão todos conectados e contribuem grandemente no nosso estado de espírito, nos deixando perdidos e se esforçando para ter coisas que nem queremos numa vã tentativa de apaziguar um vazio fabricado. Como sair desse ciclo vicioso?
Lidando com o vazio
Você não é um quebra-cabeça a ser completado. Você já é alguém. Não precisa conquistar algo para justificar sua existência. Buscar a felicidade através de se completar externamente vai levar ao exato oposto. A busca tem de ser interna.
Somos seres sociais, ser independente e ser sozinho não são a mesma coisa, por mais que a sociedade moderna as tenha igualado. Pessoas que são verdadeiramente independentes conseguem se sentar com alguém sem se projetar ou pensar que todos estão nos julgando. Elas sabem que nada se conquista sozinho e que a maior conquista que podemos ter é uma comunidade que nos abraça e apoia de forma física e real.
Uma das medidas que eu tomei foi transformar meu celular em um “dumb phone” ou um “celular burro”, que só contém o essencial. Hoje tudo se concentra no nosso celular, descentralizar e ter o contato presencial com todas as possibilidades e incômodos é reclamar nossa vida de volta.
Excluir redes sociais não é um conceito novo, mas elevar esse estado ao máximo talvez não seja tão conhecido assim. Deixar a tela só em preto e branco, desativar notificações, deixar o fundo de tela preto, a lista de passos é grande e depende de até onde você está disposta a ir. Se você se sente super estimulado, considere ter um celular burro.
Por mais impactantes que sejam, as redes são só parte do problema. Em seu trabalho, A Secular World, Charles Taylor diz que sofremos uma falta de encantamento e envolvimento com algo maior do que nós mesmos na atualidade em relação as eras anteriores da humanidade e de como a expansão do individualismo nos leva a sentir vazios que tentamos suprir com outras coisas materiais. Nas possíveis soluções, ele concluí:
Primeiro, precisamos reconhecer as limitações de uma visão de mundo puramente materialista. A busca por posses materiais, embora ofereça satisfação temporária, em última análise falha em fornecer significado duradouro.
Segundo, precisamos cultivar um senso de conexão com algo maior do que nós mesmos, seja por meio da religião, comunidade, natureza ou arte. Precisamos encontrar maneiras de transcender as limitações do eu protegido e nos abrir para experiências de admiração, maravilha e conexão.
Terceiro, precisamos resgatar um senso de propósito e significado que esteja fundamentado em algo diferente da autoexpressão individual. Precisamos encontrar maneiras de contribuir para o bem comum, de fazer a diferença no mundo. Isso pode envolver voluntariado, ativismo ou simplesmente se envolver em atos de gentileza e compaixão. A chave é encontrar algo que dê significado às nossas vidas além da busca pela felicidade pessoal.
Tradução livre minha e citação de Philosopheasy, Charles Taylor: Why Modern Spirituality Feel Empty?
Seres humanos são seres complexos, então dificilmente a razão do nosso sofrimento será fruto de uma coisa só. O sofrimento pode ser tanto fruto quanto a fonte de fenômenos, tendo impacto político, social, entre outros. Isso implica que cada setor da sociedade também sente esse impacto de maneira diferente no sistema atual.
O impacto no feminino
Guerras, IA’s que produzem imagens e vídeos só com uma foto do rosto de uma pessoa, até a possibilidade de alcançarmos o cenário da Singularidade descrita por Ray Kurzweil onde a inteligência artificial nos ultrapassará e nós começaremos a unir humano e máquina para continuar nossa evolução (leia-se aperfeiçoamento)…Em toda mudança radical enfrentada pela humanidade, as mais afetadas negativamente são sempre as mulheres.
Por isso, é preciso levar em consideração e se atentar em como isso nos afeta física e psicologicamente, e como isso pode ser usado contra os nossos melhores interesses, nos mantendo distraídas e distantes da raiz do problema.
O fascismo não precisa dizer às mulheres para se submeterem. Ele simplesmente cria condições em que a submissão parece autoaperfeiçoamento.
Citação de Sisipho Mbuli, Fascism thrive on women’s self-doubt
No texto, Sisipho também explora bastante essa ideia de aperfeiçoamento e beleza como artifício de controle sobre as mulheres. É um texto interessante, recomendo.
Para além da beleza, isso afeta todas as áreas da vida feminina de forma diferente, das pressões especificas aplicadas pela sociedade nas mulheres: A relação de trabalho e família, a jornada dupla de cuidar da casa e trabalhar, os sonhos que são permitidos e esperados de nós. Sob a lente do aperfeiçoamento, o descanso que já era raro se torna inexistente já que deveríamos arranjar tempo para fazer mais e a culpa é delegada inteiramente a nós mesmas numa espécie de fábula meritocrática.
O ato mais revolucionário de uma mulher é sempre lembrar do seu valor e não deixar que o definam por você. Controlar as mulheres sempre foi um passo essencial para controlar uma sociedade - como seres humanos, mães, irmãs, professoras temos mais poder do que nos é normalmente creditado. É importante lembrar de que somos muito mais do um grande potencial e do aquilo que esperam de nós nos papéis que exercemos, portanto não precisamos de permissão para existir e ser quem somos.
Se você fala inglês, recomendo demais esse vídeo da via’s journal entries que foca mais em relacionamentos em si mas fala bastante sob a pressão social ao qual as mulheres são submetidas.
Aceitando as limitações humanas
Como todo mundo, também tenho vontade de ler todos os livros já escritos, assistir todos os filmes, ouvir todas as músicas, visitar todos os países e ser todas as profissões. Saber da existência de todo tipo de coisa que ainda não somos ou temos pela rede é mais uma fonte de frustração do que qualquer outra coisa. É muito difícil ser confrontado com as nossas próprias limitações, mas são elas que nos fazem humanos. Não é necessário superá-las para validar nosso espírito humano de ir além ou qualquer coisa do tipo.
Ser humano é ser finito. É saber que desde o primeiro dia, temos nossos dias contados. A morte dá sentido a vida. Não precisar saber tudo é mágico. Nosso tempo se torna mais precioso, assim como nossas conexões. Você não precisa estar em todos os lugares, só precisa estar aqui.
Se recentralizar e encontrar prazer em ficar de fora de algo é parte essencial para uma mudança radical no modelo de sociedade que vivemos atualmente. Significa parar de se esgotar para suprir algo que nunca será suficiente em nome do interesse de terceiros e encontrar significado naquilo que tem valor real para nós pessoalmente. Focar em mudanças reais e críveis começando debaixo para cima e colocar nossas energias em prol do mundo que desejamos deixar depois do nosso tempos acabar.
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Surreal! Realmente essa última parte me pegou “a morte da sentido a vida” ser finito nos torna belos, nos torna humanos🤯😭