O poder de um lápis e a descompartimentalização do ser
Como pequenas ações mudam o curso da história
As tardes de inverno tem um gosto específico de caldos e chá quente e alguma coisa no ar gélido que faz o céu ficar mais bonito no pôr-do-sol. Não me entenda mal, sou uma pessoa de verão definitivamente, mas existe algo de belo em encontrar o lado bom de coisas inevitáveis como o inverno.
Tem certas coisas nessa vida que não se escolhe, elas nos escolhem. Foi assim que virei professora de inglês, trazida pelas inúmeras torções e distorções da vida, apesar de cada curva em que isso quase aconteceu antes mas não até os astros se alinharem aparentemente.
Dar aulas não só me mudou como pessoa, mas me fez perceber o quanto a educação é a arma mais poderosa no mundo atual. Se não tivesse estudado inglês, não saberia metade das coisas que sei hoje e seria uma pessoa completamente diferente. Então dar a oportunidade e ferramentas para outras pessoas de ganhar perspectiva e poder de escolha sobre sua própria vida é algo realmente satisfatório e revolucionário pra mim.
Porém, tenho uma confissão a fazer.
Achava uma hipérbole a coisa toda da caneta como arma que pudesse causar uma mudança histórica, um exagero intencional de uso poético, algo assim. Como pode, uma caneta?
Sim, livros mudam o mundo, mas nos últimos tempos me parece que o mundo anda menos flexível a mudança do que antigamente. Mas talvez também seja porque eu mesma tenho tido dificuldade de pegar um lápis nesses últimos quase dois anos. Sei que não sou a única. Poxa, até o próprio Joe Sacco disse que anda difícil demais desenhar o que as pessoas fazem com as outras.
Acho que acabei perdendo parcialmente, para não dizer quase totalmente, a fé no impacto que algo tão pequeno quanto um lápis pode causar no mundo real, uma ideia que parece pertencer mais a um conto de fadas ou um mundo ideal, distante do que o que nós vivemos atualmente.
Também sei que isso é algo planejado e que isso beneficia as pessoas que enriquecem a partir das estruturas de poder através do medo, de nos fazer parecer menores do que somos. Gente com medo se mantém calada.
Algumas semanas atrás descobri que uma informação bacana de que um dos meus autores favoritos dos últimos tempos, Ghassan Kanafani, também era professor. Foi como descobrir um pedacinho de ouro preso entre páginas.
Caso não conheça, Kanafani foi um escritor e jornalista palestino que teve grande impacto histórico e cultural na literatura árabe, principalmente no relato da identidade palestina. Ele mesmo foi refugiado da catástrofe de 1948 e deu aula nos campos de refugiados enquanto publicava histórias, muitas com crianças como personagens principais, entre outros romances famosos como Homens ao Sol que foram adaptados para o cinema.
Seus contos não só fizeram um registro histórico da Palestina como também um trabalho de registro topográfico comparável a James Joyce e Willian Faulkner, nomeando e localizando diversas cidades e aldeias que foram destruídas pela passagem do tempo e por eventos políticos.
Kanafani também publicou livros infantis de histórias que escreveu e ilustrou para sua sobrinha Lamis, com quem foi assassinado em uma explosão do serviço secreto israelense no seu carro aos 36 anos de idade. Seu legado, porém, continua a ecoar de diversas formas pelo mundo até chegar as mãos de uma jovem de uma cidade pequena no Brasil e então ao clube do livro, motivo pelo qual sou capaz de ter o prazer de apresentá-lo a você, querido leitor.
O pequeno ato de escrever palavras com caneta no papel perdurando através do espaço e do tempo, mudando o rumo da história. Mas não só a escrita pode mudar o ruma das coisas.
Quase dois anos atrás, a lente de um jovem fotógrafo capturava a imagem de uma garota presa nos escombros de um prédio residencial de 8 andares depois de um bombardeio.
Graças à foto tirada por ele, foi possível trazer atenção para o caso dela que, depois de retirada debaixo do concreto, passou por mais de 60 cirurgias com possibilidade de amputação de uma das pernas. Essa semana Motaz Azaiza encontrou pessoalmente Nada andando e sem sequelas.
Uma foto que salvou a vida de uma pessoa. Como qualquer convicção minha rasa e barata poderia sobreviver a esses simples fatos?
Eles são a prova que não são só grandes atos que mudam o mundo, mas principalmente os pequenos. Uma frase de Kanafani me marcou, ele dizia que pegar em uma caneta é pegar em armas. Talvez essa também seja a característica mais incompreendida das humanas que muitos são rápidos em descartar como impráticas, sem valor ou desnecessárias na atualidade, principalmente nos tempos incertos que vivemos.
No fim, esquecemos o conhecimento tradicional que diz que somos na verdade nós de uma mesma rede, um com o mundo e não separados, portanto temos impacto simplesmente por existir nele. Um efeito dominó, uma continuação uns dos outros.
É esse corte da nossa continuidade, essa separação, que leva a compartimentalização de nós mesmos. Nos separamos de nossas vidas, uns dos outros e da nossa personalidade que só podem existir em caixas etiquetadas, ou se é uma coisa ou outra, quando na verdade somos mais complexos do que isso.
Na sua época, Kanafani foi cobrado inúmeras vezes para desistir do jornalismo em favor da sua escrita, da política em favor dos estudos, da escrita em favor da sua saúde por causa da diabetes. Ao responder, escreveu:
“Quero dizer algo. Por vezes posso dizê-lo nas notícias oficiais da manhã, às vezes concebidas para um editorial, ou numa pequena peça na página da sociedade. Por vezes, não posso dizer o que quero dizer em mais nada além de uma história.
A escolha de que falam é inexistente. Lembra-me do professor de árabe que no início de cada ano escolar pede às crianças para escreverem um ensaio sobre o que preferem a vida na aldeia ou a vida na cidade - e as crianças vivem em um campo de refugiados!”
Então, não acredito na separação do artista da arte ou de uma pessoa em partes. Sou uma só, como um só corpo repleto de mãos e braços. Sou política, acadêmica, artística, professora e aluna, tudo ao mesmo tempo.
Integrando todas as partes de nós mesmos tiramos o poder de quem nos quer divididos e confusos. É retomar nosso poder pessoal sobre nossa vida, nossos preceitos, aquilo que somos e acreditamos. Pois a vida não é uma coisa dividida por matérias, é uma coisa só onde tudo se toca e as coisas afetam diretamente umas às outras.
Quando perguntado no seu aniversário se conhecia a história do repórter que perguntou a George Bernard Shaw como se sentia ao fazer 90 anos e a resposta de Shaw que se sentia feliz considerando a alternativa, disse que se sentia feliz, não por considerar a alternativa, mas porque sabia que estavam trilhando um caminho sem alternativas.
Existem certas coisas que são inevitáveis como o inverno, cabe a nós trilhar o caminho integrando todas as nossas partes possíveis, sendo cada vez mais verdadeiros com nós mesmos. Cada um escolhe que marca quer deixar com suas ações, grandes ou pequenas.
Pessoalmente, escrevo não porque tenho a pretensão de mudar o mundo, mas porque quero dizer algo e não poderia me compartimentalizar para fazer isso. Como você unifica todas as suas versões? Que marcas têm deixado por ai?
Muitas dessas informações foram tiradas do livro Filhos da Palestina, publicado pela editora Lavrapalavra.
Se você leu até aqui, gostaria de agradecer pelo tempo e atenção e por compartilhar esse momento comigo. Esse texto foi maior do que de costume, tenho demorado mais pra postar e geralmente é porque ando matutando muita coisa, algumas ideias precisam maturar e de uma atenção maior na edição. Mas pode ter certeza que não tenho intenção alguma de parar de escrever.
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Edição final feita ouvindo Little Simz - The Garden.
Até a próxima! :)
/gibris