Te escrevo hoje da praia.
O sol aquece minha pele que tem gosto de sal, areia e um tipo de felicidade que não experimentava há pouco mais de um ano, quem sabe mais. Um dia perfeito é raridade nos dias de hoje. Mesmo agora nuvens carregadas de chuva ameaçam no horizonte, nos cercando mas impedidas de nos alcançar por alguma força maior da natureza ou de Deus.
Eu vi Deus. Eu vi Deus no rosto do menino. Eu vi Deus nos amigos brincando com um bumerangue, na risada da minha família, na árvore caída coberta de mexilhões. Vi Deus no pranto de uma mãe do outro lado do mundo. Não na boca que prega frases decoradas, nem em nenhuma túnica eclesiástica.
Deixo o sabor do limão misturado ao álcool preencher minha boca e descer gelado pela garganta, refrescando o calor. Algum músculo solidificado dentro de mim se solta, se transforma em água e eu me deixo derreter. Se for uma profanidade, então sejamos profanos. Nós criamos os dois mesmo.
Não acho que traduziram a palavra Solace do inglês para o português corretamente, ou certamente algo do sentido foi perdido, pois ela não significa só consolo. Minha mente brinca com palavras e etimologias até quase adormecer sentada, os outros saíram para caminhar e vão demorar um bocado ainda.
Aproveito cada segundo como se fosse o leite e mel da vida adulta, porque é.
Amanhã é Páscoa, o Papa Francisco morre depois de amanhã mas eu ainda não sei disso.
Não vão nem esperar o corpo do homem esfriar antes de compartilhar e acreditar em cada vídeo que alega ter previsto a morte do Papa. O nome de Nostradamus é jogado ali, uma profecia duvidosa de um bispo irlandês chamado São Malaquias é publicada no jornal, alguém no café da manhã diz ter previsto ela mesma tal evento histórico.
É natural, penso, é sempre assim. Não me sinto crítica nem ofendida, mesmo sabendo que tem gente fazendo dinheiro com isso, mas quase dou risada do fato de estarem disputando quem previu a morte de um senhor de 88 anos de idade que ficou internado diversas vezes nos últimos meses e anos.
Como pessoa, acredito que perdemos sim com a morte dele, assim como se perde com a morte de toda e qualquer pessoa. Acreditar que se perde mais com a morte de um Papa do que com a de uma pessoa comum é levar a sério demais as invenções humanas de importância. Duvido que o próprio Francisco considerasse sua vida mais importante do que a de qualquer um.
De qualquer forma, ainda não é Páscoa. Jesus ainda não ressuscitou, Francisco ainda não morreu e eu me faço o favor de esquecer que estou esperando um e-mail importante chegar.
Quando chega a hora de ir embora, me despeço do mar com uma última olhada. Um surfista está parado à beira d’água, olhando também. Compartilhamos esse breve momento de adeus ao dia em silêncio solene e há metros de distância, então cada um segue seu caminho e eu sei que não vou ver esse dia dar as caras novamente tão cedo. Me apego a ele como quem se apega à um símbolo de fé e religião.
Passamos a Páscoa insistindo em ir à praia mesmo com a inconstância do tempo, fugindo pro carro quando a chuva ameaçava cair e voltando quando ela passava. Por fim, voltamos mais cedo e fomos para a cidade, com direito a sermos escolhidos pela blitz da polícia.
“É por causa da cor do carro.”
Vermelho vivo é chamativo, cor de carro de quem bebe aparentemente. Depois do policial dar uma olhada no carro cheio de pessoas emperiquitadas e sorrirmos de volta, e de um teste do bafômetro negativo, seguimos caminho dando risada das intercorrências da viagem.
Passeamos pela cidade e andamos a orla quase toda até finalmente decidirmos jantar no lugar onde tomei o melhor suco de amora da minha vida. Nada supera um bom suco de fruta, algo difícil de achar hoje em dia. Tive que me segurar para não beber tudo antes da comida chegar.
Outra bebida que tenho me aficionado é soda italiana de maçã. Parece muito mais chique do que é - água gaseificada, xarope e gelo. Digo especialmente de maçã verde porque nenhum dos outros sabores chega perto de ser tão gostoso. Uma boa bebida é o acompanhamento perfeito para conversar e pode mudar o humor de uma pessoa.
Minhas obsessões da semana incluem dois textos do substack:
É um texto interessantíssimo que fala sobre a importância da arte, em especial do teatro como ferramenta da própria democracia desde sua criação na Grécia Antiga, e de como a supressão de um ritual feminino de luto contribuem para a realidade disfuncional que vivemos hoje.
“Começa com o banimento das ingovernáveis vozes femininas de luto e raiva, depois continua através da domesticação dos poderes divinos.”
(tradução livre feita por mim).
Chegar aqui foi uma saga em si - os dois carros quebraram, a locadora queria um absurdo por um carro furreco e pegamos emprestado com um tio - e ir embora não podia ser diferente. Com praticamente todas as pessoas do estado enfurnadas na mesma cidade e tentando sair ao mesmo tempo, 17 horas de viagem parece pouco em comparação ao que outras pessoas levaram na volta pra casa.
Pra quem não sabe, eu tenho uma leve obsessão por civilizações esquecidas ou simplesmente ignoradas pela maioria das pessoas. Tudo começou com os minoicos saltadores de touro de Creta (sim, a Creta do minotauro) e sua deusa matriarca serpente, mas isso é uma história para outro dia. No caminho de volta, aproveitei para ler esse artigo incrível sobre a cidade Afgã de Kandahar:
Kandahar: The Second Homer of Zoroastrianism - Our Forgotten Stories, por Shabnam Nasimi
Conta a história da cidade de Kandahar, hoje diminuída na representação e no imaginário como a cidade do Talibã, que na verdade tem uma história rica anterior até a Alexandre, O Grande. Shabnam faz um trabalho incrível em apresentar o tema, passando pelas estátuas budistas com influência hindu e grega e explicando como religiões e culturas diferentes conviviam em harmonia.
“Nas cortes, você poderia encontrar um monge budista, um sacerdote hindu e um guardião do fogo zoroastriano tendo um debate civilizado sobre metafísica - possivelmente enquanto discutiam sobre as melhores rotas de comércio para Roma.”
(tradução livre por mim).O texto não é só uma lição de história, mas uma revolução na narrativa imposta ao lugar atualmente. Poderíamos aprender umas coisinhas com Kandahar atualmente e é sensacional ver o nascimento de um país junto com toda referência artística trazida por Shabnam. Leia. Recomendo demais.
Cabeça de Bodhisattva, esculpida em xisto (rocha vulcânica), Gandhara.
Descobri recentemente os desenhos de giz pastel do pintor austríaco Josef Maria Auchentaller e percebe uma semelhança muito grande com uma obra que mostrei recentemente por aqui - Intimacy (2015) de Thomas Blackshear. Quero dar uma pesquisada mais afundo depois pra entender se existe mesmo alguma ligação ou inspiração com a Mulher com máscaras (1904) do Auchentaller.
Não encontrei nada sobre relacionando os dois. Fica ai o questionamento se Blackshear usou de inspiração sem mencionar ou foi simplesmente uma (muito) grande coincidência?
Gosto dessa rede, ela me dá uma ótima desculpa para ser uma nerd no meu tempo livre e aumentar meu repertório em diversas frontes. Além de me obrigar a escrever, óbvio.
No final, a vida é feita do espaço entre o nascer e o morrer, o começo e o fim. Feita de incoerências e ambiguidades, o caminho do meio. Mundana. Então façamos proveito do nosso tempo aqui para desperdiça-lo à nossa maneira.
…
Somos 22 agora no nosso Café com Bolo! Queria aproveitar esse finalzinho para agradecer a cada pessoa que se inscreveu e que lê o que posto por aqui. Vocês são incríveis.
Obrigada por ler mesmo com o atraso e me digam se gostaram desse formato que é diferente dos textos que costumo trazer aqui, quase que como uma entrada de um diário com as últimas coisas que andam acontecendo e o que ando lendo, ouvindo e comendo e pensamentos misturados nisso tudo.
Não sou muito dada a influencer, mas fui obrigada pelo feriado e pela viagem a tentar algo novo por aqui. Semana que vem voltamos à programação normal de textos saindo na segunda.
uau
1. "Se for uma profanidade, então sejamos profanos. Nós criamos os dois mesmo." A aspas fala por sí. Que trecho belo!
2. A estrutura variando entre passado e futuro ficou incrivelmente agradável de ler! "O Papa Francisco morre depois de amanhã, mas eu ainda não sei disso."
🫨✨✨